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Ideologia e objetividade nas Ciências Sociais


Por Ricardo Normanha

Ideologia e ciência são conceitos necessariamente opostos? É possível praticar uma ciência objetiva livre de ideologias e visões de mundo? Afinal, o que é ideologia?
O termo ideologia é um dos mais controversos, ambíguos e repletos de significado na história do pensamento moderno. De acordo com o sociólogo Michael Löwy, o termo foi inventado no início do século XIX por Destut de Tracy e se referia a uma “ciência das ideias”, um estudo das ideias. É uma definição bastante vaga e imprecisa, mas de certo modo, serve como base para o desenvolvimento de definições mais elaboradas ao longo do tempo.
Um dos mais importantes pensadores a discutir a questão da ideologia é o alemão Karl Marx que, em meados do século XIX, a definiu como uma falsa consciência. Ou seja, para Marx, ideologia é um conjunto de ideias, socialmente construídas, que os indivíduos elaboram sobre a realidade, mas que não correspondem à realidade concreta. São ilusórias e servem para mascarar a realidade, esconder seus reais mecanismos de funcionamento. Nesse sentido, para Marx, a ideologia são as ideias construídas pela classe dominante para manter a sua dominação.

Anos mais tarde, já no início do século XX, Vladimir Lênin, um dos líderes da Revolução Russa de 1917, atribui ao termo ideologia o sentido de “conjunto das concepções de mundo ligadas às classes sociais”[1]. É a partir desta concepção que o sociólogo Karl Mannheim, em 1929, irá “aperfeiçoar” o conceito de ideologia.

Visões sociais de mundo: Ideologia x Utopia
Para Mannheim, a definição de Marx e de Lênin careciam de uma elaboração mais cuidadosa e que pudesse distinguir os diferentes conjuntos de ideias e concepções de mundo das diferentes classes sociais. Partindo da ideia de que, de fato, a sociedade está dividida em classes, ou seja, em grupos sociais e que entre esses grupos existe uma relação de dominação, Mannheim tratou de diferenciar este conjunto de ideias, pontos de vista, elaborados por cada uma das classes sociais. 

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Karl Mannheim (1893 -1947), sociólogo húngaro.

Desta forma, para o sociólogo, a ideologia é a visão social de mundo a partir do ponto de vista da classe dominante e que busca manter a sua dominação, a ordem vigente. Por outro lado, os grupos sociais (ou classes sociais) dominados também desenvolvem o seu próprio conjunto de ideias. A este conjunto de ideias elaborado a partir do ponto de vista dos dominados, Mannheim dá o nome de utopia. Nesse sentido, as classes dominadas, conscientes de sua posição na estrutura social, buscam reverter a ordem estabelecida, transformando a realidade social. Assim, a utopia dos de baixo tem grande potencial revolucionário.

O pensamento utópico é o que aspira a um estado não-existente das relações sociais, o que lhe dá, ao menos potencialmente, um caráter crítico, subversivo, ou mesmo explosivo[2]

Mas, e a ciência?
Diante da constatação de que todos os indivíduos possuem uma visão social de mundo, como podemos pensar em uma objetividade da ciência, ou melhor, é possível fazer ciência sem a influência do conjunto de ideias que formam o ponto de vista da classe social a qual pertence o cientista? Esse é um debate muito recorrente em todos os campos do conhecimento científico, em especial nas ciências sociais. A proposta do sociólogo Michael Löwy é a de que nosso ponto de vista é determinado pela posição que ocupamos na sociedade e que “todo conhecimento e interpretação da realidade social estão ligados, direta ou indiretamente, a uma das grandes visões sociais de mundo”[3]. Isto é, a nossa observação da sociedade é socialmente condicionada. E, reconhecer isso é o primeiro passo para o desenvolvimento sério e criterioso das Ciências Sociais.



[1] LÖWY, Michael. As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Munchhausen. São Paulo: Cortez, 2000. P.10
[2] Idem, p. 12.
[3] Idem, p. 13-14.

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