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A Sociologia de Pierre Bourdieu


Por Ricardo Normanha*

Pierre Bourdieu (1930-2002) foi um sociólogo francês contemporâneo e que trouxe grande contribuição para o desenvolvimento da sociologia no século XX. A obra de Bourdieu toca em diversos temas importantes da nossa sociedade, como as relações de poder e dominação, a questão da educação como reprodutora das desigualdades e os mecanismos de violência simbólica. Pode-se dizer que Pierre Bourdieu elaborou uma verdadeira teoria social, uma vez que suas contribuições tentam dar conta da complexidade da sociedade e das relações dinâmicas e dialéticas entre a ação dos indivíduos e a estrutura social

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É buscando compreender essas relações (indivíduo x sociedade / ação x estrutura social) que Bourdieu retoma os pensadores clássicos da sociologia e coloca-os em um diálogo improvável, já que as obras de Émile Durkheim, Karl Marx e Max Weber apresentam diferenças substanciais entre si. De todo modo, Bourdieu consegue captar elementos importantes das teorias sociais destes três autores e relacioná-los à sua própria elaboração teórica.
Enquanto Durkheim aponta para a primazia da estrutura social em relação ao indivíduo, ou seja, verifica que nas sociedades modernas a forma como a sociedade está estruturada define e até determina a ação dos indivíduos, Weber observa que o conjunto das ações individuais dotadas de um sentido social e interrelação entre si é que constrói o tecido social, isto é, a sociedade é moldada a partir do ação dos indivíduos em suas relações sociais.
Partindo das posições antagônicas entre esses autores, Bourdieu percebe que tanto a estrutura social define a ação individual quanto a ação dos indivíduos define a sociedade. Em outras palavras, Pierre Bourdieu entende que a relação entre indivíduo e sociedade é uma relação dialética, de mão dupla em que os dois elementos (indivíduo e sociedade) estão se redefinindo constantemente.
De Marx, Bourdieu toma emprestada a ideia de que as relações sociais são permeadas por relações de poder e dominação. Enquanto o pensador alemão, ao analisar a sociedade capitalista no século XIX, observou que a dinâmica da sociedade é marcada pela luta de classes, ou seja, o conflito entre a burguesia (proprietária dos meios de produção) e proletariado (possuidor da força de trabalho), Pierre Bourdieu, verificando a complexidade da sociedade no século XX, entendeu que as relações de poder e dominação são também mais complexas e se dão em vários níveis e segmentos sociais.
A construção da teoria social de Bourdieu se desenvolve a partir de alguns conceitos elaborados pelo autor e que são fundamentais para a compreensão de sua obra. Entre eles, destacam-se os conceitos de habitus, campo, capital e distinção.

Habitus
Com o conceito de habitus, Bourdieu pretende dar consistência para a sua ideia de que a relação entre a ação individual e a estrutura social é permeada por uma dinâmica de dupla determinação, ou seja, em que uma determina a outra. Para o autor, o habitus são “sistemas de posições duráveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes” (BOURDIEU, 1994, p.61). Na teoria social desenvolvida pelo sociólogo francês, os indivíduos interiorizam os valores e normas sociais, bem como os sistemas de classificação preexistentes, garantindo que as ações individuais estejam adequadas com a realidade objetiva. Assim, a eficácia de uma ação já se encontra predisposta na própria estrutura social. Ao mesmo tempo, a ação prática e efetiva dos indivíduos estrutura as relações entre os indivíduos dentro de determinado espaço social – o campo. “Em outras palavras, o habitus é um acumulado de aprendizados passados (...) que conforma e orienta a ação, que produz e reproduz as relações sociais e que é engendrado pelas relações sociais” (ALMEIDA, 2016, p. 217-218).

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Fonte: Youtube - Univesp TV (Capital Cultural)

Campo
Como já indicamos acima, o campo é o espaço social onde se dão as relações sociais protagonizadas pelos indivíduos. Os diferentes campos possuem características específicas de funcionamento. Por exemplo, o campo das artes tem características diferentes do campo econômico ou do campo da política, embora todos esses espaços sociais possam ter relações entre si. O campo funciona a partir de um conjunto de regras próprias que tornam as ações dos indivíduos pré-dispostas, ou seja, em um determinado campo, os agentes (indivíduos) agem de forma mais ou menos previsível.
É no campo também que se estabelecem as relações de concorrência entre os indivíduos, em uma intensa e eterna disputa por maior poder dentro do espaço social. Assim, a estrutura do campo define as posições dos indivíduos e as relações de poder e dominação que se estabelecem entre eles.

Capital
Para compreender as relações de poder e dominação no interior do campo, Bourdieu se apropria do conceito de capital, já muito utilizado, principalmente entre os autores que se dedicavam a estudar a sociedade a partir da economia. Mas Bourdieu amplia o conceito de capital para além do seu significado econômico. Para o sociólogo francês, o capital pode ser econômico (riquezas materiais), mas também pode ser social (que se refere aos benefícios propiciados pela rede de relações sociais dos indivíduos), cultural (que tem a ver com o grau de conhecimento e instrução dos indivíduos) e simbólico (que se relaciona com a imagem, fama ou status de um indivíduo ou grupo social).
A quantidade de capital que um indivíduo possui determina a sua posição dentro do campo e das relações de dominação. Vale ressaltar que, para Bourdieu, cada campo exige um tipo específico de capital, ou seja, em alguns espaços ter muito dinheiro pode significar muita coisa, mas em outros, não.

Distinção
A partir disso, Pierre Bourdieu desenvolve o conceito de distinção que se refere basicamente a distribuição desigual de capital (de todos os tipos) dentro de um determinado campo. Dessa forma, determinam-se o grupo dominante (aqueles que possuem mais capital específico) e o grupo dominado (que possui menos capital).
É com base nestas ideias que Bourdieu irá desenvolver, ao lado de Jean-Claude Passeron, uma importante reflexão sobre os mecanismos sociais que produzem e, principalmente, reproduzem as desigualdades. Na obra A Reprodução, escrita nos anos de 1960, os autores analisam o sistema de ensino francês e constatam que a escola é um espaço que reproduz desigualdades, mais do que busca superá-las. Ao observarem que o sistema de ensino francês (mas a reflexão serve para a realidade brasileira também), privilegia aqueles estudantes que já possuem mais capital cultural em detrimento daqueles que não possuem, ao invés de promover a igualdade entre os indivíduos, reforça as desigualdades. Assim, estudantes que vêm de famílias com maior capital cultural (e muitas vezes, também maio capital econômico) tendem a se sair melhor no sistema escolar, enquanto aqueles que tem menos capital cultural, vão ficando marginalizados dentro da própria escola.

A Univesp (Universidade Virtual do Estado de São Paulo) produziu um vídeo muito interessante explicando a ideia de capital cultural, relacionada à violência simbólica e à educação. Você pode assistir ao vídeo clicando AQUI

violência simbólica
Fonte da imagem: https://www.agendartecultura.com.br/noticias/humor-violencia-simbolica-internet/

Este mecanismo de exclusão, que Bourdieu relaciona também às ideias de coação e constrangimento, acontece no ambiente escolar, mas não é exclusividade do campo da educação. Em todas as esferas sociais nas quais há uma distribuição desigual de capital entre os indivíduos, há um conflito que se manifesta como aquilo que o sociólogo chama de violência simbólica. Como o nome diz, a violência simbólica não é uma violência física. Ela se manifesta como um sentimento de inferioridade entre aqueles que possuem menos capital específico dentro de um campo. Ao virar motivo de chacota na sala de aula pelo fato de ter tirado nota baixa em uma prova, um aluno está sendo vítima de violência simbólica.

Como pudemos notar, a teoria sociológica elaborada por Pierre Bourdieu nos permite observar criticamente diversos âmbitos de nossa sociedade. Isso faz de Bourdieu um dos pensadores mais importantes do século XX. Seus conceitos são fundamentais para pensarmos as diferentes relações de poder na sociedade bem como os mecanismos que produzem e reproduzem as desigualdades entre os indivíduos.

*Ricardo Normanha é sociólogo, cientista político e professor de sociologia e filosofia no Ensino Médio.

Referências bibliográficas
ALMEIDA, Ricardo Normanha R. Pensando o campo cinematográfico a partir das contribuições de Pierre Bourdieu. Revista Novos Rumos Sociológicos - UFPEL. V.4, n.5, 2016.
BOURDIEU, Pierre. Esboço de uma teoria da prática. In: ORTIZ, Renato. (Org.) A Sociologia de Pierre Bourdieu. São Paulo: Editora Ática, 1994.
BOURDIEU. Pierre. Escritos de Educação. Petrópolis: Vozes, 2002
GASPARETTO JÚNIOR, Antonio. Pierre Bourdieu. Site InfoEscola. Disponível em https://www.infoescola.com/biografias/pierre-bourdieu/
MARGOTTO, Gleidison. Resenha da obra “A reprodução” de Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron. Revista KiriKerê, n. 3, 2017.

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