Por Ricardo Normanha*
Uma rápida olhada nas notícias do dia é suficiente para percebermos a importância e a centralidade do mercado financeiro na economia mundial contemporânea. Sobe e desce das bolsas de valores, taxa de juros, mercado de ações, especulação, grau de investimentos, tesouro direto, títulos da dívida pública, grupos de investimentos. Todo esse vocabulário, próprio dos editoriais de economia, muitas vezes confundem mais do que explicam. Para um leitor leigo, o mercado financeiro parece algo distante. Ao mesmo tempo, a financeirização da economia é um processo que afeta a todos de maneira direta. Talvez seja exatamente por isso que não se queira explicar muito sobre o seu funcionamento.
De todo modo, o propósito deste texto não é exatamente explicar o funcionamento do mercado financeiro, mas sim o processo histórico, econômico e social que fez com que o setor financeiro ganhasse tanta importância nas últimas décadas. E esse processo que chamamos de financeirização da economia.
A existência do sistema
financeiro, dos bancos, ou seja, de um setor da economia que não atuasse
diretamente na produção de mercadorias não é algo novo. Pelo contrário. A
existência do sistema financeiro pode ser notada desde os primórdios do
capitalismo comercial, em meados do século XVI e o seu princípio básico de
funcionamento consiste na transferência de recursos de poupadores/investidores
para consumidores mediante a aplicação de juros. De forma rápida e
exemplificada: com o ressurgimento do comércio, comerciantes mais bem-sucedidos
precisavam de um lugar seguro para guardar seu dinheiro e fazê-lo render. Por
outro lado, comerciantes com menos recursos e consumidores precisavam de
crédito para suas atividades comerciais. Entre os dois pontos se estabelecem as
instituições financeiras que guardam o dinheiro dos poupadores (pagando-lhe uma
determinada taxa de rendimento) e empresta esse dinheiro para aqueles que
precisam de crédito (cobrando deles uma taxa de juros superior àquela paga para
os investidores).
Com o desenvolvimento do
capitalismo industrial ao longo dos séculos XVIII e XIX, o setor financeiro, ou
capital financeiro, foi fundamental para a consolidação das indústrias (capital
produtivo ou capital industrial). As empresas mais competitivas dispunham de
crédito para a ampliação de suas fábricas e a compra de novas máquinas, ao
passo que as empresas de menor porte, tinham dificuldade para se estabelecerem
num cenário de concorrência desigual. O que se observa, até o início da segunda
metade do século XX, é o processo de fusão entre capital industrial e capital
financeiro dando origem ao capital monopolista em todas as economias
capitalistas ao redor do mundo. Isso não significa que os diferentes tipos de
capital (financeiro, industrial, agrário, comercial) tenham se tornado um único
tipo de capital. Significa apenas que, em determinados contextos do
desenvolvimento capitalista, esses diferentes tipos de capital têm interesses
interligados, mais ou menos coerentes entre si. Assim, podemos compreender por
que no Brasil, por exemplo, grandes instituições financeiras, como Itaú e
Bradesco investem em diversos ramos da economia. Da mesma forma, grupos
industriais de grande porte, como a Votorantim, Odebrecht possuem bancos
próprios e investem no mercado financeiro.
A expansão capitalista propiciada pela Revolução Industrial, na segunda metade do século XVIII, e a necessidade de ampliação das relações comerciais com diversos países do mundo, no entanto, revelou a dificuldade de se operar transações comerciais diante da diversidade de moedas ao redor do mundo. Era necessário, portanto, a criação de um padrão internacional que servisse como medida de valor para as moedas nacionais. Assim, foi criado o padrão-ouro como forma de organizar o sistema financeiro mundial. O padrão-ouro tinha como moeda fiduciária[1] a libra, já que, até o início do século XX, a Inglaterra era o país com a economia mais sólida do mundo.
As duas grandes guerras mundiais abalaram de forma decisiva as economias dos países europeus, inclusive a Inglaterra. Neste cenário, os EUA surgem como uma nova potência econômica mundial. Vale ressaltar que o fato dos conflitos terem ocorrido sobretudo no território europeu, beneficiou os EUA que, mesmo participando ativamente das guerras – especialmente da Segunda Guerra Mundial – não tiveram seu território destruído pelos confrontos. Dessa forma, em 1944, no acordo de Bretton Woods, os EUA passam a ser os responsáveis pela credibilidade das transações comerciais e um novo padrão monetário internacional é estabelecido, o padrão dólar-ouro. Assim, ao estabelecer o padrão monetário internacional, o acordo de Bretton Woods fez com que a moeda estadunidense se tornasse referência para todas as outras economias mundiais. Nesse modelo, apenas os EUA precisariam ter reservas em ouro e a emissão de dólares estaria respaldada por essas reservar. No entanto, ainda que teoricamente, a riqueza representada pelo dólar tinha sua equivalência em ouro. Ou seja, qualquer indivíduo poderia converter suas notas de dólares em ouro e isso seria garantido pelo governo dos EUA.
Mas se o sistema financeiro existe desde os primórdios do capitalismo, por que dizemos que há um processo de financeirização da economia capitalista nos últimos anos? Falar em financeirização da economia significa dizer que em um determinado regime de acumulação capitalista[2] as finanças assumem uma importância cada vez maior. E este processo atual de financeirização tem o seu início na segunda metade do século XX, mais precisamente entre o final da década de 1960 e início da década de 1970.
Ao longo dos anos de 1960 e 1970,
o crescimento econômico dos EUA e o envolvimento deste país em diversos
conflitos relacionados à Guerra Fria, como a Guerra do Vietnã, exigiu do
governo a emissão cada vez maior de dólares. No mundo todo aumentou a
circulação de dólares. Por outro lado, dado os limites de acúmulo do ouro (não
se pode criar ouro do nada! As reservas de ouro no mundo são limitadas), ficou
insustentável para o governo estadunidense garantir a conversibilidade do dólar
em ouro. Assim, em 1971, o presidente dos EUA, Richard Nixon rompe com esse
padrão monetário e passa a estabelecer o próprio dólar como referência de
riqueza. Isso significa que a moeda estadunidense não precisaria ter o seu
equivalente em ouro.
Além disso, os sinais de que o
modelo de produção fordista/taylorista já apresentava sinais de esgotamento e a
redução nos níveis de consumo fizeram com que o capital financeiro se
desassociasse do capital produtivo. Em outras palavras, percebeu-se que podia-se
acumular riquezas e gerar fluxo de capitais apenas com a especulação no mercado
financeiro. O dólar virou objeto de especulação e a taxa de câmbio flutuante
(ou seja, a valorização e desvalorização das moedas nacionais em relação ao
dólar) passou a interessar os grandes grupos de investimento. Além disso, o que
se percebe a partir desse período é a possibilidade de gerar fluxos de capital
a partir da negociação de títulos
da dívida pública dos diversos países, ações e moedas. Em outras palavras, a
possibilidade de circulação – e acumulação – de riquezas sem que fosse preciso
produzir uma mercadoria sequer, deu uma nova dinâmica para a economia mundial. Este
processo deu origem ao que se convencionou chamar de terceira fase do
desenvolvimento capitalista, ou Capitalismo
Financeiro.
Nesta fase do desenvolvimento capitalista temos o predomínio dos bancos e instituições financeiras no controle da economia e seus domínios se expandem ao redor do mundo, estando diretamente associado ao processo de globalização econômica ou mundialização do capital. Se antes o capital financeiro estava diretamente associado ao capital industrial, a crise do modelo fordista fez com que o capital financeiro se autonomizasse, passando a comercializar um novo tipo de mercadoria: ações, financiamentos, juros, títulos, dívidas e moedas. Em outras palavras, a perda da lucratividade do setor produtivo (industrial) fez com que o fluxo de capitais migrasse para o setor especulativo financeiro.
Hoje, os grandes grupos de investimento manejam enormes recursos financeiros ao toque do dedo na tela do smartphone. O capital flui entre os países de acordo com os interesses desses grandes grupos de especuladores. Para os países periféricos, a situação é bastante grave: poucas condições para a implementação de parques industriais, participação na economia mundial com serviços de baixo custo, desemprego estrutural e dependência absoluta em relação aos países desenvolvidos e aos interesses dos grupos de investimento internos e externos.
*Ricardo Normanha é sociólogo, cientista político e professor de sociologia e filosofia no Ensino Médio.
Referências para o estudo:
O que é Capital Financeiro? (Canal Jones Manoel): https://www.youtube.com/watch?v=dBU03OEUPjI
O que é a dívida pública? (Nexo Jornal): https://www.youtube.com/watch?v=FmSqT_mnZNg
Bretton Woods e o Sistema Financeiro Internacional (Canal História em Gotas): https://www.youtube.com/watch?v=NCqpP5Gxads
É possível voltarmos ao padrão ouro? (Canal Saia da Matrix): https://www.youtube.com/watch?v=UjKQTEDD7G4
Capitalismo Financeiro (Toda Matéria): https://www.todamateria.com.br/capitalismo-financeiro/
Capitalismo Financeiro (Toda Matéria): https://www.todamateria.com.br/capitalismo-financeiro/
[1]
Fiduciário é aquilo que dá confiança, credibilidade para algo. No caso da moeda
fiduciária, diante da dificuldade de movimentação de enormes quantias ouro entre
os países, uma moeda de um país com economia forte passa a ser a fiduciária, ou
seja, a representação monetária oficial das reservas de ouro dos países.
[2]
Podemos entender “regime de acumulação capitalista” como a forma específica
adotada pelo capitalismo em determinado período, ou o modelo produtivo. Assim
temos o regime de acumulação fordista/taylorista, o regime toyotista, etc.
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